Algo está errado no nome do livro Watchmen e a Teoria do Caos, do professor mineiro Gian Danton, atualmente radicado no Amapá.
Claro que dá pra perceber logo que o texto era originariamente acadêmico, apresentado como trabalho de conclusão de curso. Só que publicar o trabalho exatamente como ele foi gerado para apresentação a uma banca e ao mesmo tempo buscar como leitores do livro os fãs de quadrinhos mostra-se ridiculamente contraditório - quase ofensivo, até, porque o livro resulta muito ruim.
Em sua ficha no fim da edição, Danton se diz um especialista em redação, comunicação e metodologia científica. Seu livro, por outro lado, traz erros grosseiros exatamente em redação, grafia, metodologia e especialmente de estrutura. Será que não passou por qualquer tipo de revisão, justo vindo de um revisor? A linguagem geralmente aborrecida do ambiente acadêmico traz dezenas de restrições que deveriam ter sido superadas para a publicação de um bom livro, um que não ficasse preso ao formalismo e ao mesmo tempo não descambasse para a superficialidade. Resumindo: um trabalho dessa natureza obrigatoriamente tem de ser reescrito se tiver pretensões de se tornar literatura que não seja técnica.
O grande problema é que o texto, em sua sanha por obediência a critérios acadêmicos, virou uma bagunça fenomenal. A reescrita geral sugerida acima (e não apenas para este caso, claro) faria muito bem a Watchmen e a Teoria do Caos; criaria um livro valioso tanto no estudo de caso - um exemplo de uso intencional de uma teoria séria na ficção - como também deixaria extasiados os fãs de quadrinhos, por trazer uma análise mais detalhada, aprofundada e diferenciada de uma obra tão importante quanto Watchmen.
Além da linguagem, outra diferença importante que não foi considerada diz respeito ao tempo hábil para a criação. A apresentação de um trabalho acadêmico tem prazo diferente daquele para a publicação de um livro, isso é claro. Quando um autor com tal currículo tem a liberdade (leia-se "mais tempo e flexibilidade") de revisar não apenas sua linguagem, mas também o conteúdo abordado no texto, seria aconselhável que sempre o fizesse pelo bem de sua assinatura na capa. Há ainda uma questão de amadurecimento que costuma ser pertinente quanto à "obrigação" da entrega de um trabalho e a publicação voluntária de uma obra baseada naquele trabalho algum tempo depois. Nada disso ocorreu aqui.
É bastante óbvio para qualquer leitor mais educado que Watchmen tem mesmo intrincada fundamentação filosófica, social e até mesmo matemática, ao mesmo tempo em que se apresenta como leitura extremamente fluida e fértil para praticamente qualquer pessoa. É Literatura com maiúscula e negrito, sim. Sua adequação universal superficial erigida sobre conceitos de alta erudição e pertinência em diversas áreas constituem a beleza desse texto. Alan Moore foi o gênio capaz de organizar construção tão delicada e bem-planejada.
A presente análise da obra, entretanto, abriu mão justamente do bom planejamento esbanjado por Moore. Apanhando partes do livro que funcionam, eliminando uma quantidade infindável de informações inúteis, acrescentando o que certamente faltou e enxugando o excesso acadêmico, seria possível amarrar um senhor conteúdo, muito mais do que um livrinho de bolso ou a mera publicação de um "trabalho de escola". Vejamos alguns exemplos dessas possíveis mudanças.
O trecho que fala da biografia (relacionada a quadrinhos) de Alan Moore poderia ser facilmente incorporado no decorrer do livro, quando cada colocação se fizesse necessária. Esse começo do livro, que não é relacionado a Watchmen, é praticamente dispensável por inteiro, ainda mais quando o autor resolve se deter em outros trabalhos do autor, como V for Vendetta. A parte inicial está tão longe de qualquer eventual desdobramento adiante que não faz sentido manter as duas coisas separadas - e nem sempre há pertinência para o restante do texto!
A ausência de entretítulos que separem claramente cada seção ou cada assunto abordado é um dos maiores problemas de organização. Mesmo romances de cunho totalmente artístico-literário trazem trechos separados, para possibilitar ao leitor a pausa, a demarcação do que termina e do que começa em seguida, amarrado ou não ao que veio antes. Sem essa respirada necessária, e ainda mais considerando que o autor simplesmente não soube amarrar muitos dos assuntos, somos obrigados a saltar de uma coisa à outra sem qualquer pista de que o anterior se encerrou ou de que ali existe um "parênteses".
Além dos problemas de organização, há outros ainda mais graves. Um deles é o excesso técnico no tratamento da teoria do caos. Não há muita apresentação nem qualquer aprofundamento; simplesmente jogam-se alguns termos técnicos do nada e inicia-se uma abordagem que, sinceramente, termina parecendo aleatória e sem sentido. Naquele momento, o livro seria obrigado a se comportar como um leve veículo de divulgação científica, afinal, é necessário contextualizar o leitor naquele assunto técnico. O papel da divulgação científica é, em grande parte, o de traduzir em "língua de gente" o cientifiquês e mostrar para a "gente da língua" as aplicações práticas, as fundamentações ou a futurologia resultantes de uma descoberta, de uma pesquisa, etc. Em entrevista, o autor diz que sua grande intenção profissional sempre foi analisar e pesquisar quadrinhos de maneira séria. Sem dúvida alguma, é uma das intenções mais louváveis dentro do universo da cultura pop, comumente tratada com descaso, como assunto desimportante - a própria série Watchmen prova esse engano. Entretanto, tal propósito dificilmente é alcançado no livro, apenas em um ou outra passagem interessante. Transforma-se em um "mérito teórico". Correlacionar um assunto pop a um enfoque sisudo necessariamente exigiria apresentação do tal assunto "difícil" com linguagem acessível. Mas, quando muito, o livro detém-se em exemplos alheios já surrados, sem voz própria.
O conteúdo também traz problemas sérios. Em certo momento, o autor até deixa claro que tentará abordar os elementos definidores do caos um a um e buscar exemplos e aplicações na obra original. Muito bem, sem muita definição, isso de fato acontece. Então, ele se detém, por exemplo, na simetria dos desenhos e dos quadros na narrativa gráfica de Watchmen (com méritos para algumas observações). Agora, esqueça o livro por um instante. Quem quer que tenha lido a série pensa de imediato na referência mais óbvia de todas: a máscara de Rorschach, que você vê abaixo. Pois o autor nem a menciona, nem fala do teste de mesmo nome pelo qual o personagem é obrigado a passar! Não aborda também a clara bipolaridade - também uma simetria de opostos - que existe entre Rorschach e o Dr. Manhattan, que, sozinho, é mencionado a todo momento como se fosse o único personagem-chave da história. Manhattan causa fascínio, sim, mas por isso mesmo deve ser visto com distanciamento, como bem mandam os rigores científicos. Diabos, eu nem mesmo lembro se o nome de Rorschach aparece em algum momento do livro! Como é possível??
Da forma como está, caro leitor de quadrinhos e, mais ainda, caro apreciador de Watchmen, essa pequena análise pretendida por Danton se mostra superficial, paupérrima e falha em diversos sentidos. Não vale a pena como obra afim; talvez valha apenas como uma certa "iniciação" às complexidades da teoria do caos, se o leitor chegar avisado a essa função do livro. Caso contrário, só vai lamentar a compra do livrinho e o fato de o título de algo tão fascinante quanto Watchmen estar ligado a ele.