
Exatamente por conta dessa decepção enorme com o filme, aviso ao leitor que ainda não assistiu que o texto abaixo contém spoilers sérios pra justificar a ilusão que virou desilusão. Avisado?
Pois bem, o leitor está familiarizado com o conceito de deus ex machina? Não tem absolutamente nada a ver com o que se diz por aí a respeito de "um fantasma dentro da máquina", "um defeito que ninguém sabe de onde vem" ou "encarnar uma pessoa em um computador". Esqueça essa besteirada toda. Deus ex machina é um nome técnico que se dá ao velho recurso de se introduzir um elemento estranho na história de maneira abrupta - geralmente, uma solução de caso ou um forte desvio proposital no foco. Um deus ex machina pode apenas ser uma continuação natural inesperada (como a aparição da escotilha de Lost, num episódio chamado justamente "Deus Ex Machina") ou uma ofensa frontal ao espectador-leitor, como nos casos de soluções "tiradas da manga", que aparecem sem mais nem menos e então "explicam" tudo (sem explicar) da maneira menos convincente possível.

Passemos ao filme. The Prestige abre com o assassinato do personagem de Jackman (o Grande Danton) e com a prisão do Professor, interpretado por Bale, acusado do crime. As cenas seguintes revelam que ambos começaram como colegas, aprendizes do veterano "mágico-engenheiro" vivido por Caine. Um dia, durante uma apresentação, um dos pupilos comete um sério deslize e cria com o outro uma rivalidade que se alongará por anos de jogo sujo dos dois lados. Os dois se profissionalizam, o antigo mestre passa a auxiliar um deles nos bastidores e a personagem de Johansson aparece mais tarde como uma assistente de palco.
O espectador vai acompanhando o imbróglio entre os agora rivais e a trama avança de modo incrível, num ritmo muito correto e envolvente. Com uma hora e meia de filme, é provavelmente das histórias mais interessantes que você já assistiu num cinema. A rivalidade se mostra cada vez mais intrincada sem precisar de muita complicação, e captura o espectador fácil e rapidamente por suas idas e vindas contadas de maneira enxuta. A direção extremamente precisa faz uso magistral da prerrogativa de escolha de um diretor: conta o que precisa ser contado de forma sumária e exclui convenientemente o que cabe excluir, sem se dobrar a mastigar tudo para o espectador.
Somando-se esse desenvolvimento às mencionadas atuações e à participação de Bowie no papel do cientista sérvio (vivendo nos EUA) Nikola Tesla - um dos maiores engenheiros elétricos de todos os tempos e verdadeiro inventor do rádio e de um monte de coisa a que não damos o devido crédito hoje -, tudo caminha para a certeza de um dos grandes filmes do ano, senão o melhor.

Tesla encerra o filme provando-se realmente o maior de todos, mas por um feito que nunca cometeu e que nunca funcionaria como "impressão que passou à História como fato", da forma como temos, por exemplo, em O Tigre e o Dragão e seu lutadores voadores. A intervenção do cientista finda justamente como o deus ex machina a que nos referimos: a criação de um típico elemento de ficção científica - daqueles que faz mesmo o impossível - em um filme que vinha bastante verossímil até então. O roteiro transforma o genial cientista em um verdadeiro super-herói, enquanto os mágicos são "apenas espertos".
Fica incômodo, então, esse desfecho sem sentido: se vale o irreal, então vale tudo. Cadê a graça? Não há dúvida de que o jogo de rivalidade entre Danton e o Professor é muito bem construído - a forma como um mágico engana o outro e leva o troco, e então cria novo ataque mais radical e toma uma resposta ainda mais extrema até que não se sabe mais quem vencerá e quais serão as novas conseqüências. Essa explicação para os atos finais de Danton é que nos leva a um novo mundo em que os números de ambos se tornam irrelevantes. Acaba se tornando irreal para o espectador, ao apelar para uma solução que fica muito difícil de engolir - sem falar que, se o espectador é também um leitor de quadrinhos e acompanha outros filmes do gênero, essa história de clones passa a ser um verdadeiro estorvo.

Não satisfeito com a saída um tanto pobre dos clones - torcendo a realidade como solução, e não como premissa -, o roteiro busca esclarecimento ainda mais rasteiro para o mistério do Professor, bastante típico dos piores novelões: a existência de um prosaico gêmeo não revelado. Quantas vezes já não se viu esse surradíssimo clichê em histórias que envolvem um mistério aparentemente insolúvel? Esse segundo deus ex machina na forma de explicação batida se mostra ainda mais decepcionante que o primeiro, acima de tudo porque era desnecessário. Ao longo do filme, chama-se tanto a atenção para a frase "Are you watching closely?" que o espectador mais atento consegue mesmo captar o que virá. Se não houvesse tanta insistência (só a menção), a frase e os acontecimentos causariam maior impacto. No caso em questão, preste atenção à fala do Professor com relação ao ator bêbado. Segundo ele diz, o tal ator nunca se mostra direito, entra e sai mudo e tem trejeitos diferentes dos de Danton. Enquanto isso, o próprio assistente do Professor obedece aos mesmos princípios, mas quem não revela isso é a câmera. É bem fácil perceber que eles são dublês. Mas resolver isso com gêmeos? Por que não algo menos óbvio?
A resposta está na estranha necessidade do roteirista de criar um longo tratado sobre a obsessão. O Professor, que se revela o melhor mágico e o aluno mais dedicado, usa a sua em prol do ofício, fingindo por uma vida da mesma maneira que o artista chinês. É ele quem "apela" para o truque natural do gêmeo. O outro ex-aluno, Angier / Danton, precisa de artifícios mais mundanos (como o truque artificial do clone) e se diz carente apenas das expressões de encanto do público. Vive em busca do fascínio, e não finge totalmente sua vida - tanto que é também bem fácil perceber que ele e Lord Caldlow serão a mesma pessoa. Sua obsessão acontece em âmbito pessoal, e não profissional. É a fim de elucidar essa diferença que o roteiro ultrapassa a realidade, com tal afinco que revela uma igual obsessão do próprio roteirista Nolan. Para satisfazê-la, o autor permite que ela tome o lugar da razão, quebra a barreira entre um artifício no enredo e um recurso artificial na construção e assim macula em definitivo o excepcional andamento da história.

Até esse ponto, grande parte do filme carrega mágica autêntica, do tipo que ilude o espectador e o surpreende em tantos momentos. A prestidigitação acontece incansável, somos iludidos durante cenas e mais cenas nas quais cada fala pode ser um novo truque. A mágica também está na competência dos atores e do diretor, além de outras ótimas sacadas no correr da história, como a metáfora do canário morto e a sugestão de que o Professor e seu assistente enganam a todos desde sempre. Mas um bom mágico não revela seus segredos, e o roteirista preferiu revelá-los da pior maneira, ao apelar para uma enorme mentirinha em seu processo de criação.
Saiu-se um mágico barato com uma história sólida que desmanchou no ar. O roteiro de Jonathan Nolan talvez viesse a ser uma obra de arte a ser lembrada, se se mantivesse na máxima de Marshall Berman e na metáfora para o rompimento promovido pela modernidade - representado ali por Tesla e suas brincadeiras com a eletricidade -, apenas mostrando que todo truque, por mais encantador, tem um pé no real e/ou na ciência. Mas não no completamente irreal!
Se houve essa intenção (inclusive com a incipiente criação da ficção científica), ela ficou tão sutil que nem mesmo transparece. Ao precisar negar a realidade para provar a sua própria "nova realidade" usando a figura de Tesla, Nolan só conseguiu mesmo forçar demais nossa "suspensão da descrença", desmerecer os feitos de seus heróis mágicos e renegar boa parte de sua história nas duas horas anteriores. Entreteve durante, mas perdeu a chance de manter a platéia encantada após o espetáculo.