segunda-feira, outubro 16, 2006

DC: A Nova Fronteira

This picture is hosted by ImageShackVendo a capa do primeiro número de DC: A Nova Fronteira, pensei logo na Era de Ouro dos quadrinhos. Mas essa história caprichada, editada em dois volumes (meio salgados) pela Panini no Brasil, trata muito mais da transição entre esta e a Era de Prata, ou seja, aquele terreno freqüentemente nebuloso não apenas no universo próprio dos quadrinhos, mas também no nosso, em termos de compreensibilidade pelo leitor.

A obra de Darwyn Cooke (roteiro e desenhos) veio para fazer a ponte entre as Eras, explicando o lapso para o leitor da maneira mais exaustiva possível. Mesmo tendo chegado desavisado ao material, depositei nessa premissa uma ótima perspectiva. Infelizmente, onde talvez se esperasse uma transição "heróica", resultou um conjunto bem mais "burocrático" de explicações sobre as transformações políticas, sociais e científicas daquela época, cheias de discussões sobre ideais e motivações, com pitadas ocasionais de heroísmo. A extensa história nem mesmo pode ser descrita como "uma aventura". Está mais para o lado documental, episódico, em que fragmentos do mundo são narrados ao mesmo tempo e mostram-se muito mais interligados do que se supunha. Tudo isso converge para, finalmente, formar a Era de Prata.

This picture is hosted by ImageShackAinda que a tal perspectiva não se tenha cumprido à altura, a emenda de Cooke se saiu muito bem arquitetada. O autor deixa claro o ocaso de uma certa "veia de pensamento" reinante na Era de Ouro e depois constrói as circunstâncias para que uma nova forma de encarar as coisas (em especial, as "coisas super-heroísticas") tenha possibilitado o surgimento da Era de Prata. A noção de começo, meio e fim da história é um pouco tênue, mas se mostra mais claramente quando avançamos na leitura. O ponto de partida é justamente a "aposentadoria" da Sociedade da Justiça, e a última cena sugere justamente a criação da Liga da Justiça como sucessora naquele legado.

Nessa transição, muitas origens que já conhecíamos são recontadas (algumas com detalhes nunca vistos, outras em apenas uma página, mantendo a lenda intocada) e conexões muito atraentes entre os personagens são feitas com alguma naturalidade, à moda de Six Degrees of Separation ou Lost. Nesse campo das conexões, Cooke se mostra tão criativo que chega a confundir, no bom sentido. Elas são excelentes, muito bem formuladas e amarradas, a ponto que ficamos pensando na viabilidade daquilo tudo, na quantidade de coincidências, como se o mundo (ou os EUA) fosse bem menor do que é.

Contribuem os desenhos saudosistas que quase sempre resgatam fielmente o visual, a época e as verdades de cada personagem - como o feminismo e o pacifismo de uma Mulher-Maravilha desenhada à antiga, com bermudão colante em vez de biquíni; o Batman misterioso e orelhudo de Bob Kane, que depois muda de visual e arruma um parceiro; o Super-Homem, com escudo preto e "desviando o olhar" durante a Guerra do Vietnã, também passa por transformações de visão e comportamento à medida que o mundo muda em volta dele. O conjunto de roteiro e desenhos se mostra perfeito para caracterizar a mudança dos tempos e as mudanças algo inexplicáveis que os leitores de quadrinhos presenciaram naqueles tempos.

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Entretanto, um outro lado do trabalho de Cooke deixa bastante a desejar. Por exemplo, o leitor que não está plenamente familiarizado com os conceitos das Eras e em como elas se delimitam terá grande dificuldade em contextualizar trechos da história e em identificar o que marca o começo e o fim da narrativa. Vai parecer tudo muito solto, como um recorte ao acaso. Recomenda-se, portanto, que o leitor tenha, no mínimo, muita curiosidade a respeito dessa transição, mas é mesmo necessário grande conhecimento prévio.

Outro ponto fraco é que, em vez de se centrar em personagens individuais, A Nova Fronteira parece não ter alternativa a não ser distribuir sua atenção pelo Universo DC como um todo, esmiuçando a transição com explicações em excesso e carência de ação em boa parte do material. E, quando a ação pesada finalmente acontece... ela não se explica em quase nada! Um ser-ilha "aparece" como responsável por determinadas perturbações, dão pra esse ser o nome de "Centro" e tudo começa a acontecer sem que saibamos de onde veio aquela linha narrativa.

A série, então, acaba sofrendo, ainda que em muito menor grau, do mesmo pecado daqueles álbuns gigantes elaborados por Alex Ross e Paul Dini (com Super-Homem, Batman, Mulher-Maravilha, Capitão Marvel, Liga): muito discurso e pouca evolução, o que torna a narrativa bastante chata em alguns momentos (ainda que infinitamente mais interessante que as bobagens "construtivas" de Paul Dini).

This picture is hosted by ImageShackA ausência de um fio condutor que unificaria a história acaba sendo um certo problema também. A origem do Lanterna Verde Hal Jordan pode ser tomada como uma referência genérica, mas nunca chega a centralizar, apenas a balizar. Muitos outros fatos simultâneos acontecem sem uma ligação necessária com o personagem. Tudo isso é mostrado como numa abrangente linha do tempo em que realmente só o tempo é comum a tudo.

A propósito, uma complicação final aparece em decorrência dessa linha do tempo. Convenhamos, representa bem pouco para a história, mas é enorme para a DC: temos a criação de um novo lapso inexplicável no tempo "real", ligando origens datadas (por circunstâncias e arte) aos dias de hoje. É coisa pouca, sim, mas vamos dar um exemplo significativo: como Hal Jordan pode ter lutado na Guerra da Coréia por volta dos 28 anos e ter a aparência de uns 35 na continuidade atual?

Verdade seja dita, Cooke busca a economia. Suas explicações são excessivas, é verdade, mas tudo leva a crer que não haveria outra forma de descrever a transição. É possível perceber certo esforço em não cansar o leitor, uma vez que o autor muda constantemente o foco da história, dentro daquele mesmo esquema de não trazer um único fio condutor. Vira um jogo de compensações: enquanto a carga explicativa e a ausência de ação efetiva são indispensáveis para que se entenda o grande processo de mudança de mentalidade entre as Eras, Cooke está consciente disso e tenta picar a narrativa em momentos-chave.

Para velhos conhecedores de DC, Cooke dá nova luz ao conturbado histórico da editora e às raízes de alguns personagens centrais de hoje. É claro que uma visão mais detalhada e mastigada daquele período como um todo tomaria mais uns cinco volumes como os atuais, o que torna A Nova Fronteira uma narrativa um pouco confusa para o pessoal de primeira viagem. Mas o autor fez suas amarras com categoria e cumpriu a promessa de ajudar a pôr ordem na casa - o que ganha ainda maior importância agora em 2006, quando cinco ou seis "Crises" seguidas propõem uma nova reformulação do universo DC. Mesmo que as novas explicações convençam e entretenham, não dá pra afirmar se serão "oficiais" por muito tempo - ou se já são hoje...