terça-feira, outubro 03, 2006

O diabo veste é nada...

This picture is hosted by ImageShackVocê já assistiu a The Devil Wears Prada? Se é um cinéfilo ou, no mínimo, um espectador com um pouquinho mais de experiência, não se preocupe em ir ao cinema para ver: você já assistiu, sim. E umas quatro ou cinco vezes, provavelmente.

Como rara concessão, fui ver isso em uma estratégica sessão vazia na semana passada. Dupla concessão, aliás: estréia (nunca) e filminho "do momento" (nunca mesmo!). Veja como a palavra "nunca" pode ser um tanto relativa quando a estratégia funciona...

Deixei a sala com a sensação incômoda de estar cansado demais para uma happy hour depois da Sessão da Tarde. Claro, era quase meia-noite. O filme é "divertidinho" e nunca passa disso. Proporciona alguma distração e duas ou três risadas até que chega aquela hora em que o espectador percebe no que se meteu de novo. Afinal, só vai acabar se divertindo de verdade quem ainda não está enjoado da repetição de uma fórmula que já seria previsível dez anos atrás. Ou seja, cinéfilos verdadeiros e/ou exigentes em geral, cheguem avisados: é bomba!

A questão em O Diabo Veste Prada é que o hype criado pelos deslumbrados de costume não se justifica em absoluto, como de costume acontece. Falação parece algo "necessário" pra esse povo, não apenas pelo lançamento blockbuster como também pela temática "féchon" escandalosa por si mesma, sempre superficial, sempre estúpida e sempre superestimada por natureza. Pois a película que se vem elogiando em excesso é apenas mais um continho de fadas redundante, muito ordinário e sem atrativos de história ou de estética. Mas que fala de deslumbrados e, infelizmente, para deslumbrados. Passado o momento, quando os mesmos sujeitos (objetos?) voltarem sua atenção para o décimo-segundo "melhor fime da minha vida" de 2006, teremos só mais um lançamento em DVD bastante mediano e nada memorável.

This picture is hosted by ImageShackResumo da traminha surrada à exaustão: menina chega na cidade grande "para vencer", descobre a verdade sobre esse "vencer", passa por crise de consciência e então decide que não vale o sacrifício. No meio, o preço a se pagar é ficar parecida demais com alguém que todos classificam como "o diabo".

Dito isso, seria de se esperar que diretor ou roteirista quisessem aproveitar para introduzir algum elemento de diferenciação ou alguma variação inesperada para fazer valer o hype e o enredo requentado cara-de-pau. Isso não acontece. A babaquice que sempre cerca e fecha a mesma fórmula também está lá, firme. Não apenas a historinha da menina carrega no idealismo barato e característico ("Por favor, heroína, não passe para o lado negro da força!"), como o filme ainda se entrega a algo bem pior: as velhas atenuações hollywoodianas, que aqui acontecem a rodo!

Primeiro, vem aquela coisa de que "lá no fundo, todo mundo é humano e igual". A personagem mais afetada pelo problema é Miranda Priestly (vivida por Meryl Streep), a editora de uma certa revista Runway, 100% inspirada na Vogue. No livro que deu origem ao filme, Priestly é mesmo demoníaca, abusa e pisa tanto quanto pode e nunca precisa se revelar frágil; no filme, mesmo depois de uma hora de projeção, apenas seus empregados criam essa expectativa sobre uma figura mandona carregada de crueldade ocupando uma posição-chave.This picture is hosted by ImageShack A própria pessoa da chefe, durante um bom tempo, não mostra isso de fato. Os outros a vêem como "o diabo" apenas porque ela exige determinados requisitos para cumprir seu papel, que é importantíssimo e de alta responsabilidade - o de "única opinião que importa na moda", nas palavras de uma das personagens.

Lá pras tantas, Priestly finalmente se mostra mesmo grossa de verdade, indelicada, esnobe, artificializada. Mas, antes e depois disso, ela só "é o diabo" por conta da visão estreita desses mesmos empregados, que ela gosta de pôr à prova o tempo inteiro. Nunca aquela pessoa tão ruim assim aparece para o espectador. Alguém aí conhece um chefe que tenha obrigações gigantescas, que lide com grande parte do dinheiro e da imagem da empresa, e que seja bonzinho de verdade o tempo todo? Isso não existe, é uma ilusão. Não dá pra entender pra quê, nos filmes, as pessoas parecem precisar desse denominador comum falso do "somos todos humanos".

Está aí um sinal enorme de algo muito errado no filme. Qualquer pessoa com um mínimo de vivência sabe que tipos muito piores que Priestly de fato existem, não se arrependem, não precisam de máscaras sociais e nem mesmo tentam ser simpáticos. Por que enganar todo mundo com aquele roteiro? O livro não nega a editora como "um diabo" até o fim (e daí seu justo título), mas o roteiro do filme preferiu a covardia de fazer média com fashionistas e seguidores em geral, atraindo-os para o cinema com as caras e roupas e futilidades típicas, a escancarar a carga crítica que estampa o texto original. Incomoda que, no filme, tentem mais uma vez passar esse final como verdadeiro. Perde-se uma oportunidade crucial de mostrar que aqueles nojentos que vestem Prada e se acabam em desmandos são realmente "o diabo". Perde-se a chance de mostrar em Priestly uma personagem mais realista, que o espectador possa odiar de verdade. No filme, a megera é "humana como qualquer um". Oh!...This picture is hosted by ImageShack

Aliás, consta que o livro (não li ainda) traz um retrato muito fiel do que acontece de fato nos meios "féchon". Se o filme deixa de lado os elementos que criam esse retrato em toda a sua crueza, e que são a razão de ser da história pesada e do sucesso do romance, o que teria restado? A assistente Emily foi atenuada para virar vítima, a gosto do povão noveleiro. No livro, ela é muito mais cínica e desobediente, como uma pessoa de verdade, frente à loucura muito mais verdadeira da patroa.

Na mesma linha, o costureiro Nigel original não é tão camarada e é muito mais afetado (no filme, não deixam ele criar essa antipatia); Priestly não tem problemas no casamento, mas tinham de criar um dramalhão e uma chefe "humana"; e Andrea não faz sua "boa ação" para Emily (resta respeito entre elas, mas não aquela amizade artificial), entre outras liberdades. Em especial, o clima no encerramento do livro e a motivação final para as decisões da protagonista são enormemente diferentes do desfecho hollywoodiano, refletindo a real intenção da história:This picture is hosted by ImageShack uma crítica aberta e franca, sem crise de consciência, sem "amiguinhas", com as palavras certas ditas nas horas certas para as pessoas certas. Até as cuidadosas escolhas do livro para nomes, situações e locais, todas justificadas pela finesse aparente dos envolvidos, foram substituídas por lugares-comuns, nomes pra qualquer mané reconhecer e se sentir agradado.

Não houve apenas uma diluição; foi, sim, um desvirtuamento vergonhoso. Quem sabe, então, exista algum crédito diferente no roteiro despetalado de Aline Brosh McKenna? Vejamos...

Esquecendo e aceitando por um momento todas as alterações descabidas do filme, poderíamos pensar que, por conta do tal desfecho moralista, o título "O Diabo Veste Prada" passaria a soar como uma espécie de "opinião de alguém" dentro do jogo de fachadas que caracterizam o ridículo "mundo da moda". Ou seja, Meryl Streep faria de tudo pra se manter superficial enquanto nos leva a acreditar que ela não é o diabo que todos pensam que é, ainda que isso não adiante pros outros personagens. Pra eles, ela continua "sendo" e querendo "ser", como um Mr. Darcy às avessas.

Enquanto os funcionários sob seu comando não duvidam da capacidade da chefe em momento algum, todos "se acham" muito superiores a ela - e a qualquer outra pessoa. A crítica do roteiro estaria em afirmar, um tanto sutilmente, que os indivíduos hoje acreditam tão piamente no lema "ninguém me diz o que fazer" que as próprias noções de competência e de hierarquia perderam seu sentido. Sendo assim, o chefe que cobra e que sabe fazer sempre vai virar "o diabo" por qualquer razão comum. Só que, enquanto esses empregados anti-profissionais e o chefe "sacana" acabam sendo todos "diabos que vestem Prada", a pretensão de quem xinga a chefe é sem dúvida muito maior. Naquele universinho patético da comercialização da vaidade, esse pensamento ganharia uma turbinada incrível.

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O roteiro poderia, mas não mostra nada disso com clareza. Com essa possibilidade acima, já estamos dando crédito demais a uma história que não o tem. A crítica seria perfeita, mas ela não acontece de verdade, porque se esconde tanto que nem dá pra saber se existia alguma intenção. Há, portanto, grandes chances de o espectador comum continuar acreditando em um título mais literal na saída do filme (como os personagens estúpidos), quando a tal chefe nem é isso tudo e só pratica suas malvadezas hollywoodianas ocasionais (claro...).

Entre os que se consideram patrões de si mesmos sem terem condições para tal, dificilmente haveria compreensão dessa "mensagem", a não ser que o diretor a esfregasse na cara deles. Se o roteiro foi escrito para agradar povinho de moda, é bom salientar que essa gente, mais especificamente, nunca está propensa a entender esse tipo de "dica". De certa forma, foi esse mesmo "excesso de sutileza" que rendeu muitas críticas às primeiras temporadas da série Sex And The City (diversas vezes dirigida pelo mesmo David Frankel). É um recurso absolutamente imperceptível para esses incômodos "alternativos" que a gente vê (e principalmente ouve) pra todo lado. Tenho medo é dos que diziam gostar da série sem entender essa sátira, achando aquilo tudo muito normal...

Na sessão em que eu estava, por exemplo, três "rapazinhos" de vinte e poucos anos, sem qualquer noção de onde se encontravam, passaram o filme falando alto e saíram dando risada, dizendo que o filme era "tuuuudo", sem nem perceber o quanto foram (ou deveriam ter sido) ridicularizados, eles/as mesmos/as, durante aquelas quase duas horas. E é evidente que são essas mesmas pessoas que vão considerar um "atestado de grande coisa" o fato de as bilheterias americanas e brasileiras terem sido bem altas. Quantidade não é qualidade, como já comprovaram tantas porcarias homéricas.

This picture is hosted by ImageShackA direção tranqüila de Frankel se rende aos enganos no script e em muitas escolhas de visual e de música, mas faz com alguma competência o que deve ser feito. Infelizmente, não foi mergulhando nesse universo repugnante (e atenuado, lembre-se!) e "se infectando" de obviedades que diretor e roteirista conseguiram mostrar algo. Mais do que os estereótipos, imperam os clichês mais bobos desse mundo, e só eles chamam a atenção: a sucessão de gente esnobe, a trilha sonora irritante de tão óbvia, uma coisa de louco feito Anne Hathaway sendo chamada de "gorda" por longos 110 minutos, um enganando o outro que come a cabeça de um terceiro, Paris isso, Paris aquilo, Paris, Paris, Paris...

Venha esse roteiro do que tiver vindo - covardia ou redação ruim - dificilmente houve acerto. Poderiam fácil ter usado tudo isso acima - que todo mundo já conhece - para destruir o joguinho de egos com mais propriedade. No fim das contas, para entendimento do que Lauren Weisberger, escritora do livro, queria transmitir, o filme pode e deve ser desconsiderado. O teor de sua obra não existe nas telas, e o fraquíssimo roteiro do filme não vale em absoluto como reflexo do realismo azedo pretendido no livro. Resultaram apenas a besteirinha da mocinha na cidade e mais uma afirmação, pras pessoas normais, de como o tal "mundo da moda" é individualista e repulsivo por excelência.

Antes tivessem mantido a personagem principal olhando aquilo tudo meio "de fora" ou sendo absorvida de vez; ou pelo menos que mostrassem alguém mau de verdade que não precisasse viver de pose (e todos achassem "súúúper-normal"). Mas sem qualquer lição de moral no fim, por favor! Se não conseguiram deixar claro nada disso, na prática não houve crítica, só mais um filminho com um leve teor de acidez. "O diabo" não saiu tão mau quanto gostariam, e o próprio título, no filme, ficou sem sentido algum.

This picture is hosted by ImageShackClaro, você tem Meryl Streep em uma atuação excelente - mais uma atuação excelente, como todas as que ela vem entregando há anos. Não é novidade alguma ou mérito adicional. Meryl Streep é Meryl Streep, e isso nem se discute mais, é sempre muito bom de se ver! Só que a performance atual não é nada tão excepcional quanto querem nos empurrar. Pode, claro, valer um Oscar ou uma indicação, como tantas outras excelentes atuações de Streep já renderam...

Talvez essa jogação de confete extra tenha a ver também com a própria fraqueza do filme, constrastando justamente com a personagem forte e intensa com que a atriz foi presenteada. Se quiserem apontar alguma novidade ("hypeiros" não vivem sem novidade...), que se fale da atuação agradável do mulheraço Anne Hathaway, atriz antes conhecida como estrela menor e coadjuvante de Brokeback Mountain. Em tempo, e para mera informação do leitor: nossa Vulgaríssima-Mor Bündchen consegue comprometer as duas cenas curtas de que participa, com a "atuação" de um mourão de cerca e um inglês mais macarrônico que o do Pelé.