Quando do lançamento de Os Mortos-Vivos: Dias Passados no Brasil, fiquei muito bem impressionado pela quantidade de comentários positivos em blogs e sites e resolvi dar uma olhada no material. Depois das muitas menções a George Romero e à abertura idêntica à do filme 28 Days, acabei comprando o volume meio ressabiado, mas pude comprovar que as qualidades eram verdadeiras, talvez um pouco diferentes do que eu poderia prever. Muito maiores, até.
No geral, fala-se de qualidade em um texto de quadrinhos pensando em originalidade e ousadia - como acontece ocasionalmente nos títulos mensais - ou de amarrações e subtextos revolucionários, como nos trabalhos de Alan Moore. Só que o álbum de Robert Kirkman (o mesmo autor de Invencível) não necessariamente puxa pra qualquer um desses lados. Seu diferencial é justamente a grande simplicidade do texto e algumas boas trucagens de narrativa, como o uso dos tons de cinza nos desenhos (excelentes, por Tony Moore) e dos quadros mal-delineados, que ajudam a criar uma atmosfera absolutamente perfeita para a história.
De tão simples e tranqüila, a trama na verdade nem chega a ser trama. Mais uma vez, vemos o triunfo de uma obra que renega os recursos mirabolantes de alguns quadrinistas (e cineastas e produtores e músicos) em nome de um "realismo" que costuma se mostrar bem mais complicado do que muita ficção. Alguns artistas (como Terry Moore em Estranhos no Paraíso) percebem que é muito mais convincente tomar por base o mundo como ele é hoje e as pessoas com todos os seus defeitos e qualidades, e então inserir um elemento perturbador central e bastante forte. No caso da história de Kirkman, a grande cidade em que vivem seus personagens foi tomada por zumbis. Mas esse elemento não é e nem pode ser gratuito, nunca "apenas um acontecimento".
Kirkman busca o que está além do mero incidente e explora a metáfora de uma vida "diferente", deixando de lado a nojeira explícita que alguns buscam em filmes de zumbis. O autor acerta em cheio! Os zumbis são meros coadjuvantes que criam uma situação ao redor dos personagens centrais e, afinal, quem vive a história é quem viveu para contar a história. São pessoas que, apesar de tudo, continuam sendo gente comum.
A metáfora, por simples que possa parecer, nem sempre é notada por quem assiste filmes de zumbis atrás do bom e velho gore. Mas fica mais fácil de perceber na sua vida, por exemplo, quando você quer ouvir uma música diferente, sair para um lugar diferente, conhecer gente diferente, ver um filme diferente, visitar uma cidade diferente ou viver em um país diferente... e não consegue, porque tudo e todos "subitamente" (longe disso, na verdade) ficaram iguais! Certamente, o leitor em algum momento já passou por essa situação. A expressão "mortos-vivos" mostra-se muito melhor que apenas "zumbis" para descrever o que vem tomando conta do mundo há tempos...
Por narrar um cotidiano aparentemente simples, Os Mortos-Vivos (The Walking Dead, no original) traz uma leitura bem fácil e rápida. A justa paranóia dos personagens se reflete no próprio correr da história, uma vez que o tal foco restrito naquele grupo acaba se mostrando bem obsessivo até para o leitor, que passa a "participar" do grupo. Enquanto o policial Rick Grimes, sua família, seu parceiro Shane e alguns "amigos de ocasião" estão ilhados em poucos metros quadrados, com eventuais escapadas para garantir a comida, nada do mundo lá fora é mostrado, e o leitor então só fica sabendo quase tanto quanto os personagens. É bem fácil criar uma identificação com aqueles sobreviventes e sua difícil tarefa de viver um dia-a-dia meramente humano, tal como o nosso, repleto de estranhamento, conversas triviais, inveja, ciúmes, laços espontâneos, companheirismo, desconfiança...
O volume editado no Brasil, entretanto, traz dois grandes problemas: não ter escrito na capa um necessário "volume 1" de todo tamanho e o conseqüente fato de a história não ter um fim (exatamente por não ser um volume único com um arco totalmente fechado). Nos Estados Unidos, Dias Passados também foi publicada como o volume separado Days Gone Bye (um trocadilho entre "dia após dia" e "diga adeus àqueles tempos"), mas você pode ver ao lado que o volume americano não procurou passar ninguém pra trás. Além disso, os americanos receberam antes a revista em fascículos e já sabiam do que se tratava o encadernado.
A editora nacional HQM nitidamente preferiu agir de forma mais supeita. É bom o consumidor de quadrinhos ficar conhecendo essas trapaças. Mesmo depois de apreciar uma boa história, me senti tão enganado como quando a Panini lançou a terrível X-Men: O Fim sem avisar que seriam três longas e entediantes minisséries (que eu não comprei mais, lógico).
Depois de Dias Passados, que coleciona os seis primeiros números da série regular Walking Dead, já existem mais cinco volumes reunindo revistas até o número 36 (pelo menos). Vamos assistir agora à HQM arrancar o couro dos leitores com Miles Behind Us, Safety Behind Bars, The Heart's Desire, The Best Defense e This Sorrowful Life, depois de criar a dependência por um lançamento enganoso do primeiro número.